Texto: Juana Portugal / Edição: Antonio Fuchs
A Pesquisa Clínica ampliada, as inovações e grandes descobertas, o caminho percorrido por estudos até sua transformação em políticas públicas, a dedicação e o comprometimento que construíram a trajetória centenária do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas foram tema de uma mesa redonda comemorativa durante o 54º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (MedTrop 2018). Idealizado por Oswaldo Cruz e criado pelo presidente Hermes da Fonseca no início do século XX, o primeiro hospital de Pesquisa Clínica do Brasil completa 100 anos no próximo mês de novembro. Após agradecimentos aos organizadores pela oportunidade de celebrar o centenário durante o MedTrop, a diretora do Instituto, Valdiléa Veloso, fez uma breve introdução sobre a história do Hospital e em seguida explicou a proposta da atividade. “As quatro apresentações da Mesa abordam temas diferentes - Micoses Sistêmicas, Leishmaniose cutânea, Zika e Profilaxia Pré-Exposição ao HIV - para exemplificar a forma como é concebido e organizado o nosso trabalho, integrando ensino, pesquisa e assistência”, explicou, destacando a presença de Keyla Marzochi, ex-diretora que abraçou o desafio de revitalizar o Hospital em 1985, a pedido do então presidente da Fiocruz, Sergio Arouca. “Essa retomada permitiu que chegássemos ao centenário como uma instituição vibrante e produtiva. Um ambiente onde podemos prestar assistência e produzir conhecimento da mais alta qualidade e relevância”, enfatizou.
Micoses sistêmicas: primeira descrição na história da medicina
Antes de dar início a sua intervenção, Bodo Wanke, fundador do Laboratório de Micologia, destacou também o papel de Keyla Marzochi na reestruturação do Hospital, lembrando que foi um dos primeiros profissionais a chegar em 1986 com a missão de construir a área de micologia médica. “Hoje o nosso laboratório é referência nacional e internacional”, destacou, passando à palestra sobre a atuação do INI na detecção e monitoramento da hiperendemia de esporotricose e da microepidemia de Coccidioidomicose no Piauí. A esporotricose, zoonose que se alastra pelo Brasil, foi detectada em 1997 e acomete humanos e animais, especialmente felinos. Causada pelo fungo Sporothrix schenckii, encontrado no solo, em vegetais ou madeiras, a infecção acontece através do contato com materiais contaminados, como farpas ou espinhos, ou mordidas e arranhões de animais infectados. Por conta do crescimento da epidemia, o município do Rio de Janeiro passou a capacitar médicos, enfermeiros e profissionais da Estratégia de Saúde da Família para promover o diagnóstico e o tratamento da doença e determinou, junto com a Secretaria Estadual de Saúde, a inclusão da esporotricose na lista das doenças de notificação compulsória. Bodo enfatizou o impacto que a doença tem provocado, especialmente nos pacientes coinfectados pelo HIV, que desenvolvem formas graves que podem ser fatais. No âmbito laboratorial, o INI conseguiu demonstrar que a espécie do fungo associada à hiperendemia é a Sporothrix brasiliensis. Encerrando sua exposição, Bodo destacou que a coccidioidomicose foi a primeira micose sistêmica descrita na história da medicina. Não apenas foi descoberta em humanos, mas descrita em cães e detectada no solo. Relatando como foram feitas as descobertas e a investigação durante o trabalho de campo, o pesquisador enfatizou que se trata de uma endemia persistente e em expansão. A primeira microepidemia foi descoberta por ele em 1991 e até hoje o estado do Piauí concentra 85% dos casos no país.
Zika: fronteira do conhecimento
A chefe do Laboratório de Pesquisa Clínica em Doenças Febris Agudas (LapClin DFA), Patricia Brasil, falou sobre a contribuição do INI na construção do conhecimento da infecção pelo vírus Zika. Seguindo sua vocação natural como sentinelas de doenças emergentes e reemergentes, os pesquisadores já estavam atentos ao surgimento da epidemia em 2015 quando surgiu o primeiro caso no INI em um paciente portador do HIV. A coorte prospectiva para a vigilância da dengue em gestantes, estabelecida desde 2012 em Manguinhos, teve o seu estudo adaptado para fazer também o rastreamento do vírus zika, devido à hipótese de associação entre esse vírus e o surto de microcefalia no Nordeste. “Passamos de achar que a zika era uma doença benigna, apenas de uma coceira, para a confirmação do seu real papel nessa epidemia”, afirmou Patrícia. Atualmente os pesquisadores atuam em diversas frentes para descobrir o alcance da síndrome congênita do zika vírus acompanhando os bebês que foram expostos durante a gestação, inclusive aqueles que nasceram sem comprometimentos aparentes. Outras frentes incluem a investigação do potencial de infecção do vírus presente na saliva e urina, a “competição” entre o vírus zika e da chikungunya durante as epidemias e a presença do mosquito Aedes albopictus, tradicionalmente silvestre, agora nas áreas urbanas. Emocionada, Patrícia agradeceu aos integrantes da equipe do LapClin DFA e colaboradores de outras unidades da Fiocruz, instituições parceiras e financiadores, cujo comprometimento considerou vital na superação de todas as dificuldades. Patricia encerrou sua intervenção na mesa destacando o pioneirismo de Keyla Marzochi, responsável pela concepção do LapClin DFA e pelo acompanhamento da descoberta do primeiro caso de dengue no Rio de Janeiro.
Leishmaniose: metodologia inovadora
Armando Schubach, coordenador do Laboratório de Pesquisa Clínica e Vigilância em Leishmanioses (LaPClin VigiLeish), pesquisador do INI desde 1986, iniciou sua fala sobre o esquema alternativo com antimoniato de meglumina para tratamento da leishmaniose cutânea lembrando que pouco mudou desde que Gaspar Vianna introduziu o tártaro emético em 1914. O tratamento preconizado consiste na aplicação, em grandes quantidades, de medicamentos contendo antimônio pentavalente por via intramuscular ou intravenosa. Como alternativa, há mais de 30 anos o pesquisador Manoel Paes de Oliveira Neto deu início ao desenvolvimento do “tratamento intralesional”. No lugar de injeções intramusculares, o antimoniato de meglumina é aplicado de forma subcutânea diretamente nas feridas. O novo tratamento resulta em maior segurança para a saúde do paciente, pois o antimônio pentavalente pode ter efeitos tóxicos acumulativos, e apresenta praticamente a mesma eficácia utilizando um número menor de doses do medicamento. Com algumas restrições quanto ao tamanho e localização das lesões, o tratamento foi adotado pelo Ministério da Saúde.
PrEP: da Pesquisa Clínica à política pública
A chefe do Laboratório de Pesquisa Clínica em DST e AIDS (LapClin AIDS), Beatriz Grinsztejn, começou sua intervenção agradecendo o estímulo dado por Keyla Marzochi quando ela e Valdiléa Veloso criaram o Laboratório, no início dos anos 90, apostando na pesquisa do HIV como uma das linhas mestras na retomada do protagonismo do Hospital Evandro Chagas na Pesquisa Clínica. Rememorando a construção da coorte e a realização do estudo Iprex, Beatriz afirmou que “esse foi o projeto seminal que conduziu à Profilaxia Pré-Exposição (PrEP). Conseguimos comprovar que indivíduos não infectados que utilizavam antirretrovirais preventivamente estavam protegidos do HIV. Com essa informação desenhamos e aprovamos a realização do PrEP Brasil, o estudo demonstração que comprovou a eficiência da PrEP como estratégia. Associado a um estudo de custo-efetividade realizado em parceria com a Universidade de Harvard, a PrEP se tornou uma política pública e está disponível desde o início do ano no SUS”, destacou. Atualmente está em andamento o Projeto para Implementação da Profilaxia Pré-Exposição ao HIV no Brasil, no México e no Peru (ImPrEP), com o objetivo de monitorar a implementação da PrEP no SUS e ajudar a construir estratégias similares no México e no Peru trabalhando com os grupos populacionais mais expostos ao vírus: homens que fazem sexo com homens, mulheres transexuais e travestis.
Desafios para o futuro da Pesquisa Clínica ampliada
Keyla Marzochi, responsável pela reestruturação e direcionamentos pioneiros do INI na Pesquisa Clínica ampliada em 1986, fez uso da palavra para lançar um desafio. Emocionada, lembrou que a proposta contempla o ser humano e o seu entorno, abrangendo sua qualidade de vida e de suas relações, e mesmo não sendo mais uma novidade terá um lugar especial no futuro. Citando o discurso da pesquisadora Andrea Silvestre, do Laboratório de Pesquisa Clínica em Doença de Chagas, feito no dia da abertura do MedTrop, Keyla destacou a importância que deu aos pacientes desde o início da sua gestão, quando cunhou o termo "paciente-cidadão-colaborador" na pesquisa oficialmente no Conselho Deliberativo da unidade. “Aguardo o dia em que a Pesquisa Clínica, como a concebemos e realizamos no INI, seja compreendida na relevância da sua evolução, não só como pesquisa tecnológica feita com base na assistência aos doentes portadores de velhas, renovadas e novas doenças, como a Mesa tão bem representou, mas também como pesquisa humana desses mesmos doentes, necessária para garantir a qualidade de vida desses pacientes. É a partir desse olhar sobre o indivíduo e seu contexto de vida que vem as propostas para o SUS. Contribuições abrangentes para além do conhecimento, tratamento e prevenção de doenças", exortou.
“Amor, dedicação, esforço. Nada foi fácil, mas foi possível. Na situação difícil que vivemos não podemos desistir. Devemos procurar fazer o que temos ao nosso alcance com empenho e cuidado, estudando e buscando o desenvolvimento científico nas nossas instituições. Estamos todos contribuindo para a construção do conhecimento”, concluiu Valdiléa Veloso, encerrando a solenidade com um convite para que os jovens continuem esse trabalho, “venham conhecer a nossa Pesquisa Clínica e os cursos de pós-graduação que oferecemos!”.
Centenário do INI no MedTrop 2018
Para o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e diretor da Fiocruz Pernambuco, Sinval Brandão Filho, foi uma oportunidade ímpar ter o Congresso em Recife no ano do centenário do INI. "Quando recebemos a proposta da atividade a comissão científica a aprovou de imediato devido à importância do INI para a Pesquisa Clínica do país. O Instituto, desde os primórdios do Hospital Evandro Chagas, em 1918, quando Carlos Chagas passou a desenvolver ali a parte clínica dentro da pesquisa biológica sobre a Doença de Chagas, vem atendendo os pacientes e desenvolvendo pesquisas relacionadas com o diagnóstico, tratamento e profilaxia de um grande leque de doenças transmissíveis. Ali são desenvolvidos, desde sempre, estudos de alta qualidade diretamente associados à busca por respostas aos desafios apresentados por esses agravos. Parabéns por essa brilhante trajetória celebrada nessa mesa emocionante", concluiu.
Fotos: Antonio Fuchs