Assim como as histórias de nossas vidas, a história do INI está longe de ser simples. Dificuldades como falta de dinheiro, discordâncias de opiniões e lutas são também marcas da existência do INI, o Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas. O INI, que está localizado no campus de Manguinhos da Fiocruz, foi criado em 2010, mas suas origens vêm de 100 anos antes; vêm do Hospital de Manguinhos, cuja construção se iniciou em 1912. E esse hospital – um prédio tombado pelo Patrimônio Histórico – recebeu diversos nomes, todos com uma lógica própria. Assim, bem antes de ser INI, o Hospital de Manguinhos foi conhecido como Hospital de Doenças Tropicais, Hospital Oswaldo Cruz, Hospital Evandro Chagas, Centro de Pesquisa Clínica Hospital Evandro Chagas e Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec).
Conheça nossa
História de 100 anos
O Hospital de Manguinhos, por sua vez, também não foi construído com facilidade. A planta inicial previa seis prédios semelhantes, mas só um foi levado adiante. Os outros cinco ficaram no desenho.E mesmo sendo só um, a construção levou mais de seis anos. Faltou dinheiro, entre outros problemas. O projeto do hospital foi do arquiteto Luiz de Morais Junior e as etapas das obras de sua construção foram registradas pelas lentes do fotógrafo conhecido como J. Pinto. Nesse período inicial do século XX, inúmeras doenças faziam parte das preocupações das autoridades sanitárias do Brasil e dos pesquisadores do Instituto de Manguinhos. Eram grandes epidemias e endemias, urbanas e rurais, como a febre amarela, a varíola, as leishmanioses, a malária e tantas outras a serem pesquisadas, reconhecidas e resolvidas com tratamentos diversos e vacinas.
A iniciativa da construção do hospital partiu do médico Oswaldo Cruz, que era diretor do Instituto de Manguinhos (atual Fiocruz) e da Diretoria Geral de Saúde Pública (precursora do Ministério da Saúde). E essa decisão surgiu de um acontecimento inesperado. Em Minas Gerais, nas proximidades da cidade de Lassance, uma epidemia de malária vinha atingindo de forma violenta os trabalhadores da construção de uma estrada de ferro. Carlos Chagas era especialista em malária e, por isso, foi indicado por Oswaldo Cruz para ir até Lassance, com uma comitiva de técnicos e pesquisadores, a fim de impedir o avanço da doença e tratar os doentes. Mas enquanto estudava e tratava dos doentes com malária, Carlos Chagas observou uma nova doença, a tripanossomíase americana, que ficou conhecida como Doença de Chagas.
A época já era de efervescência científica, com diversas expedições ao interior do Brasil para a pesquisa sobre causas, sintomas e tratamento de doenças. A descoberta da doença de Chagas, a tripanossomíase americana, resultou num prêmio internacional a Carlos Chagas. Esse imenso ganho científico certamente contribuiu para que o então Presidente da República, Hermes da Fonseca, assinasse o decreto nº 9.346, de 24 de janeiro de 1912, que concedia verbas para a construção do Hospital de Manguinhos. Segundo esse decreto, as verbas destinavam-se a “promover a descoberta e aplicação do tratamento terapêutico e profilático da moléstia de Carlos Chagas”. (COC, Decreto N. 9.346, 24/01/12)
O Hospital de Manguinhos iniciou suas atividades em 1918; era bem equipado de acordo com os padrões técnicos mais sofisticados da época. Possuía luz elétrica, gás, telefone, sistema de ar-condicionado, sala de raio X e uma lavanderia. O citado decreto de 1912 também falava de um hospital “com todas as dependências e instalações apropriadas, tais como biotérios, locais para experimentação em animais, etc.”. (COC, Decreto N. 9.346, 24/01/12).
Além das pesquisas em pacientes com doença de Chagas, desde 1918, foram atendidos doentes com outras enfermidades, como parasitoses intestinais, malária, bouba, sífilis, leishmanioses, tuberculose, febre tifoide, pneumonia e elefantíase. Na verdade, apesar do decreto de 1912, outro decreto presidencial, de 1918, redefinia a gama de doenças a serem estudadas no Hospital. Dessa forma, não é surpreendente que o primeiro registro de internação no Hospital tenha sido a de um marinheiro encaminhado para tratamento de “doença parasitária” em 1919; sabe-se que foi hospitalizado por dois meses.
Em 1925, Evandro Chagas, filho de Carlos Chagas, frequentou o Hospital de Manguinhos, agora chamado de Hospital Oswaldo Cruz, enquanto estudante de medicina; no ano seguinte, passou a ser o responsável pelos setores de radiologia e cardiologia. Evandro realizou inúmeras pesquisas em doença de Chagas, leishmanioses e malária, participou de congressos nacionais e internacionais, e trabalhou em colaboração com inúmeros pesquisadores de renome internacional. Foi diretor do Hospital de Manguinhos e, em 1936, criou o Serviço Especial de Grandes Endemias (SEGE), cuja finalidade era pesquisar e controlar doenças e insetos vetores, especialmente do Norte e Nordeste. As expedições de Evandro Chagas pelo SEGE foram financiadas, em sua maior parte, pelo empresário Guilherme Guinle.
Apesar de sua imensa capacidade de realizações, das inúmeras atividades e interesses, Evandro Chagas, infelizmente, morreu muito cedo, em 1940, com 35 anos, em acidente aéreo na Baía de Guanabara. Assim, o Manguinhos perdeu um dos seus maiores entusiastas. Pouco após sua morte, o Hospital Oswaldo Cruz o homenageou postumamente e passou a chamar-se Hospital Evandro Chagas. Mas o País mudou, a sociedade mudou e, na década de 1950, a situação dos salários dos pesquisadores do Instituto de Manguinhos era alarmante a ponto de um jornal denunciar que esses rendimentos eram menores que os da costureira que fabricava e consertava lençóis, pijamas e uniformes. Lembremos que, nessa época, os médicos, em especial, eram considerados uma elite social, ainda que a pesquisa fosse percebida quase como um voluntariado. Mas, certamente não era mais possível conviver com a ideia romântica de trabalhar unicamente pela ciência em plena era desenvolvimentista do Brasil. Assim, inicia-se um longo período de decadência do Hospital Evandro Chagas e de todo o Instituto de Manguinhos. No hospital, tinha-se um processo de deterioração da estrutura física pelo tempo e pela falta de investimentos públicos e privados.
O ápice deste processo pelo qual passava o Instituto ocorreu em 1970, durante a ditadura militar. Neste período, encontramos poucos registros de pesquisas científicas, mas está documentada a memória da cassação de vários pesquisadores pelo regime militar e a imagem do antigo Hospital, esquecido, transformado em um depósito para a coleção entomológica. Nesse período, um prédio construído próximo ao HEC serviu de internação por mais de uma década, com um número de leitos bem maior, mas, por razões institucionais, o prédio do HEC original seria retomado como espaço hospitalar.
O processo de modernização da Fundação Oswaldo Cruz teve início em 1976, na administração de Vinícius da Fonseca. Mesmo assim, o Hospital Evandro Chagas só começou a receber investimentos maciços na década de 1980, em meio às diretrizes da Reforma Sanitária defendida por Sérgio Arouca, presidente da Fiocruz entre 1985 e 1989. As diretrizes da Reforma Sanitária angariaram força dentro de parte da comunidade médica brasileira e, de forma destacada, na Fiocruz. Com isso, o Hospital Evandro Chagas foi objeto de um novo olhar sobre pesquisa clínica, ensino e assistência aos pacientes com doenças infecciosas e parasitárias. Em 1986, o Hospital Evandro Chagas recebeu o primeiro caso de HIV/AIDS, doença que se tornou notória por atingir grupos específicos, como os 5H, traduzidos do inglês por homossexuais, heroinômanos, haitianos, prostitutas e hemofílicos. Este estigma foi considerado ultrapassado, mas seguiu como pano de fundo para se pensar sobre as causas da doença que vinha se delineando em vários países.
Se a AIDS surgiu dentro de um contexto histórico dos países desenvolvidos em que as grandes epidemias estavam dadas como mortas em seus territórios, no Brasil ela surge em um momento de grande incandescência sociopolítica: o fim da ditadura militar e a construção da democracia. A saúde se tornou uma importante questão para a corrente democrática contra a ditadura, e teve como bandeira de luta o movimento sanitarista, que estabelecia um novo paradigma na teoria médico-social para o País. A esse movimento se soma a criação de diversos grupos de estudos, prevenção e luta em defesa dos portadores do HIV, as ONGs/AIDS, como a ABIA, o Grupo Pela Vidda, o Arco-íris, entre tantos outros no Brasil. Diversos profissionais do Hospital Evandro Chagas participaram ativamente desses grupos, debatendo, redigindo material informativo, oferecendo palestras, cursos e tudo o que era possível para a difusão das práticas de prevenção, num momento em que o tratamento inexistia.
Em 1987 é realizado um convênio entre a Fiocruz e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) para a realização de pesquisas e assistência a pacientes com HIV/AIDS. Em agosto do mesmo ano, o governo federal proíbe quaisquer tipos de contratação; a interrupção desses contratos limitou de forma violenta o número de profissionais do Hospital Evandro Chagas. Apesar disso, os recursos arrecadados junto ao Ministério da Saúde foram de extrema importância. Até junho de 1988, foi injetada no HEC, através do convênio com o INAMPS, Cz$1.045.468.574, que representava uma verba substancial, utilizada não só na pesquisa do projeto AIDS. Outras pesquisas correntes, como a da dengue – que se reintroduzia no Brasil – e as tradicionais doenças tropicais, como a leishmaniose, a própria doença de Chagas, as micoses profundas, além da compra de equipamentos e insumos foram viabilizadas com essa verba.
Como vimos, a vida não é linear; nesse período, houve movimentos de discordância em relação ao novo perfil do hospital, que deixaria de ser desconhecido da população e se reintegraria à sociedade carioca e nacional, retomando, talvez, o legado de Evandro Chagas. É possível dizer que, na década 1990, o HEC voltou a se tornar um grande centro de pesquisas e atendimentos em doenças infecciosas com reconhecimento internacional.
A epidemia de HIV/AIDS, por sua altíssima mortalidade, especialmente em pessoas muito jovens, sensibilizou os profissionais do HEC a reestruturarem o hospital, seja na forma de envolvimento nas pesquisas clínicas, participação em congressos nacionais e internacionais, intercâmbios com países desenvolvidos, seja na aquisição de material necessário para cuidados de pacientes com potencial gravidade. Dessa forma, a década de 1990 é marcada nacionalmente pela consolidação do SUS e, internamente, no HEC, pela formação de grupos dedicados ao estudo e à assistência de determinadas doenças, de forma mais organizada. O estímulo institucional à qualificação acadêmica dos profissionais foi importante passo para o reconhecimento do HEC. Dessa forma, nasceria o CPqHEC, Centro de Pesquisa Clínica Hospital Evandro Chagas, nome que sintetizou o novo perfil institucional.
Pouco depois, em meio a debates intensos, nasceria o IPEC, Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, que significou uma ruptura estrutural dentro da Fiocruz. O IPEC passava a ser uma unidade autônoma, desvinculada do IOC (Instituto Oswaldo Cruz, unidade da Fiocruz), do qual dependeu por décadas. Mais uma vez, esse movimento foi definido após inúmeras discordâncias, mostrando a necessidade de negociações e participação da comunidade nas instâncias decisórias da Fiocruz. Internamente, delineava-se a criação de laboratórios de pesquisas. Na verdade, a palavra laboratório pode levar à imagem de vidraria e bancadas com microscópios. Mas os laboratórios de pesquisa foram, com efeito, a formalização dos já existentes grupos de pesquisa, agora muito mais organizados, com estruturas e funções definidas. É interessante que seja dada uma olhada no organograma do INI para o entendimento de sua estrutura em geral, assim como a dos laboratórios de pesquisa e tantos setores e serviços.
O IPEC passaria a ser reconhecido como referência para consultorias, atendimentos, ensino e pesquisa a doenças infecciosas. Na virada da década de 1990 para 2000, houve um impulso importante no aspecto do ensino. Desde o final da década de 1980, o então HEC oferecia cursos relacionados a diversos aspectos das doenças infecciosas, especialmente para profissionais da rede pública de saúde. Houve, em 1988 um curso de especialização em doenças infecciosas e parasitárias, para médicos da rede pública. Mas nas proximidades da virada de milênio, o IPEC passou a oferecer Residência Médica em Infectologia e, a seguir, mestrado e doutorado acadêmico em Pesquisa Clínica de Doenças infecciosas e Parasitárias. Hoje já conta com o mestrado profissional também, assim como Residência Multiprofissional.
Os pesquisadores do IPEC, mês a mês, ano a ano, já vinham tomando projeção nacional e internacional cada vez mais significativa com seus estudos, muitos dos quais representavam subsídios para a elaboração de políticas públicas para o SUS. O então Ministro da Saúde, José Temporão, ciente da importância social crescente do IPEC, teve a iniciativa, em 2010, de categorizá-lo como Instituto Nacional de Infectologia, nos mesmos moldes do Instituto Nacional do Câncer, de Cardiologia e Traumato-Ortopedia. Naturalmente que, diante de modificações bruscas, encontra-se tanto apoio quanto oposição. O IPEC não poderia tornar-se Instituto Nacional por decreto; era necessário que a comunidade da Fiocruz concordasse com esse novo papel. Dessa forma, na instância máxima de deliberação da Fiocruz, seu Congresso Interno, venceu a proposta a favor do IPEC, após amplo debate no qual foram confrontadas esta proposta do IPEC e a proposta para que outro hospital, fora do Rio de Janeiro, servisse de Instituto Nacional.
Por fim, a Portaria nº 4.160, de 21 de dezembro de 2010, define o Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz, como Instituto Nacional de Infectologia, para atuar como órgão auxiliar do Ministério da Saúde na formulação de políticas públicas, no planejamento, desenvolvimento, coordenação e avaliação das ações integradas para a saúde na área da Infectologia.
Como não poderia deixar de ser, o Instituto Nacional de Infectologia manteve o nome de Evandro Chagas.
Ser um Instituto Nacional trouxe mais visibilidade; no caso do INI, também evidenciou seus graves problemas de espaço. Afinal, em 2010, o setor de internação hospitalar do INI ocupava o mesmo espaço que no ano de sua inauguração, 1918. Em 2010, na verdade possuía menos leitos ainda: pouco mais de vinte, já que havia sido construído um CTI e, diante das doenças de alto contágio, como a tuberculose, é necessário, em caso de internação, um período de isolamento. Assim, um quarto com dois leitos só poderia comportar um paciente. Várias possibilidades de criação de um outro hospital com espaço maior foram levantadas. Foi sugerido um sem-número de propostas de terrenos em que se poderia construir uma nova unidade hospitalar que desse conta da demanda do INI em termos de assistência a pacientes, assim como laboratórios de pesquisas, espaços de ensino e laboratórios de suporte para exames de diferentes espécies.
Assim como a doença de Chagas foi uma descoberta inesperada que possibilitou a criação do que hoje é um Instituto Nacional de alta complexidade, foi necessário o surgimento de uma pandemia inesperada – covid-19 – para que a função do INI se expressasse em sua plenitude. Diante do desespero das mortes, do número assustadoramente crescente de doentes que demandavam cuidados intensivos, nem os maiores hospitais do Rio de Janeiro tinham capacidade de oferecer assistência suficiente à população. Nesse momento, a covid-19 representou a obrigação de se criar dentro do Instituto Nacional de Infectologia um hospital com um número de leitos que cumprisse finalmente sua função de servir dignamente à população. Assim, o Centro Hospitalar (CH) do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI) foi erguido em 2020 num tempo recorde (bem diferente dos seis anos de construção do Hospital de Manguinhos) – de apenas sete semanas – para atender à grave emergência de saúde pública.

O novo Centro Hospitalar do INI foi inaugurado no dia 17 de maio de 2020, com capacidade para até 195 leitos de unidade de terapia intensiva em quartos individualizados, atualmente com 120 leitos operacionais. Possui um equipamento sofisticado que impede a contaminação da equipe hospitalar e dos visitantes por vírus ou outros agentes patógenos transmitidos pelo ar. O CH do INI foi completamente envolvido na assistência e pesquisa sobre covid-19 até o arrefecimento da pandemia. Em 2022, ampliou o atendimento para as doenças infecciosas que já faziam parte de seu repertório. No novo espaço do INI foi diagnosticado, em 2022, o primeiro caso de Mpox no Rio de Janeiro e o segundo no Brasil. Nitidamente, o CH é mais um marco na centenária história do INI; vem contribuindo para a consolidação de seu protagonismo como unidade da Fiocruz, integrante do Sistema Único de Saúde (SUS).
Dra. Maria Regina Cotrim Guimarães, médica infectologista, mestre e doutora em História das Ciências e da Saúde, pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Clínica em IST, HIV/Aids do INI/Fiocruz.